Era uma vez
um rei que tinha uma filha. A mãe da menina morrera e a madrasta sentia muito
ciúme da enteada; sempre falava mal dela para o rei.
A moça vivia
a se desculpar e a se desesperar; porém, a madrasta tanto falou e tanto fez que
o rei, embora afeiçoado à filha, acabou dando razão à rainha e decidiu
expulsá-la de casa. Contudo, disse que ela deveria ficar em um lugar no qual se
instalasse bem, pois não admitiria que fosse maltratada.
— Quanto a isso
— disse a madrasta —, fique tranquilo, não pense mais no caso.
E mandou
encerrar a moça num castelo no meio do bosque.
Destacou um
grupo de damas da corte e as mandou para lá, a fim de fazer companhia a ela,
com a recomendação de que não a deixasse sair, e nem mesmo se aproximar da
janela. Naturalmente, lhes pagava salários da casa real.
A moça
recebeu um aposento bem montado, podendo beber e comer tudo que quisesse: só
não podia sair. Todavia, as damas, muito bem pagas e com tanto tempo livre, nem
se preocupavam com ela.
De vez em
quando, o rei perguntava à mulher:
— E nossa
filha, como vai? O que fez de bom?
A rainha,
para mostrar que se interessava pela jovem, foi visitá-la. No castelo, assim
que desceu da carruagem, foi recebida pelas damas, dizendo-lhe que ficasse tranquila,
que a moça estava muito bem e era muito feliz. A rainha subiu um momento até o quarto
da moça.
— E então,
está realmente bem? Não lhe falta nada, não é? Está com uma bela cor, vejo que
a aparência é boa.
Mantenha-se
alegre, hein? Até a próxima. — E foi embora.
Chegando ao
castelo, disse ao rei que jamais vira sua filha tão contente.
Mas na
verdade, sempre sozinha naquele aposento, pois as damas de companhia jamais lhe
davam atenção, a princesa passava os dias tristemente debruçada na janela.
Debruçava-se
com os braços apoiados no balcão e teria feito um
calo nos cotovelos, se não tivesse lembrado de colocar uma
almofada embaixo deles.
A janela
dava para o bosque e a princesa, durante o dia inteiro,
só via os cimos das árvores, as nuvens e a trilha dos caçadores.
Um dia,
passou por ali o filho de um rei, que perseguia
um javali.
Ele sabia que aquele castelo havia muito tempo estava desabitado, e se admirou
ao ver sinais de vida: panos estendidos entre as ameias, fumaça nas chaminés,
vidraças abertas.
Observava
tudo, quando viu, em uma janela lá do alto, uma bela moça debruçada, e sorriu
para ela. A moça também viu o príncipe, vestido de amarelo e com polainas de
caçador e espingarda, que olhava para cima e sorria para ela; então, ela também
sorriu para ele.
Ficaram
assim uma hora, olhando-se e rindo, e também fazendo
gestos e reverências, pois a distância que os separava não permitia outras
comunicações.
No dia
seguinte, aquele filho de rei vestido de amarelo, com a desculpa de ir caçar,
estava lá de novo, e ficaram se olhando por duas horas. Dessa vez, além dos sorrisos,
gestos e reverências, puseram também uma das mãos no coração e acenaram lenços durante
um bom tempo.
No terceiro
dia, o príncipe ficou três horas e eles chegaram até a mandar um beijo, um para
o outro, na ponta dos dedos.
No quarto
dia, ele estava lá como sempre quando, de trás de uma árvore, apareceu uma
bruxa que começou a zombar:
—
Uah!Uah!Uah!
— Quem é
você? De que está rindo? — Disse energicamente o príncipe.
— Onde é que
já se viu dois namorados tão estúpidos a ponto de ficar tão distantes!
— Se
soubesse como fazer para alcançá-la, avozinha...
— disse o
príncipe.
— Acho os
dois simpáticos — disse a bruxa — e vou ajudá-los.
E, indo
bater à porta do castelo, deu às damas de companhia um velho livro ressequido e
besuntado, dizendo que era um presente para a princesa, para que se distraísse lendo.
As damas logo
o levaram para a moça, que imediatamente o abriu e leu: “Este é um livro
mágico”. Se virar as
páginas no sentido certo, o homem se transforma em pássaro, e se virar as páginas
ao contrário, o pássaro se transforma de novo em homem".
A moça
correu até a janela, pousou o livro no balcão e começou a
virar as páginas às pressas, enquanto observava o jovem vestido de amarelo, em
pé no meio da trilha.
Ela viu
quando o jovem vestido de amarelo mexia os braços, agitava as asas e se
transformava em um canário. O canário alçava voo, eis que já era dono das
alturas, acima das árvores, e eis que se dirigia a ela e pousava na almofada do
balcão.
A princesa
não resistiu à tentação de pegar aquele belo canário na palma da mão e beijá-lo; depois lembrou que ele era um jovem e se envergonhou;
a seguir, lembrou-se disso de novo e já não se envergonhou. Mas não via a hora
de transformá-lo em um jovem como antes.
Retomou o
livro, folheou-o ao contrário, e eis que o canário
arrepiava as penas amarelas, agitava as asas, mexia os braços e era outra
vez o rapaz vestido de amarelo, com os trajes de caçador, que se ajoelhava aos
pés dela e lhe dizia:
— Eu te amo!
Depois que
declararam todo seu amor, já era noite.
Lentamente,
a princesa começou a virar as páginas do livro.
O jovem,
olhando-a nos olhos, se transformou outra vez em canário, pousou no balcão e
depois nas telhas do beirai, entregou-se ao vento e desceu voando em grandes
círculos, indo parar num ramo de árvore baixo.
Então, ela
virou as páginas ao contrário, o canário voltou a ser príncipe, o príncipe
pulou para o chão, chamou os cães com
um assobio, mandou um beijo em direção à janela e se afastou pela trilha.
E, assim,
todos os dias o livro era folheado para fazer o príncipe voar até a janela no alto
da torre, folheado de novo para devolver-lhe forma humana, depois folheado
outra vez para fazê-lo voar e folheado de novo para que pudesse voltar para
casa. Os dois jovens nunca haviam sido tão felizes.
Um dia, a
rainha foi visitar a enteada. Passeou pelo aposento, dizendo sempre:
— Você está
bem, não? Acho que está um pouco magra, mas não é nada sério, não é verdade?
Você nunca tão bem, não?
Entretanto,
para certificar-se de que tudo estava sob controle, abriu a janela, olhou para
fora e, na trilha lá embaixo, viu o príncipe vestido de amarelo que se
aproximava com seus cães. "Se essa dengosa acha que pode bancar a sedutora
na janela, vou lhe dar uma lição", pensou.
Pediu para a
jovem ir preparar um copo de água com açúcar. Assim que se viu sozinha, arrancou
cinco ou seis alfinetes do penteado e os espetou na almofada, de modo que
ficassem com as pontas para cima, mas sem serem notados. "Ela vai aprender
a ficar debruçada no balcão!"
A moça
voltou com a água com açúcar, e ela disse:
— Hum,
passou a sede, beba você, queridinha! Tenho que voltar para perto de seu pai.
Não está precisando de nada, não é? Então, adeus. — E foi embora.
Logo que a
carruagem da rainha se afastou, a moça virou rapidamente as páginas do livro, o
príncipe se transformou em canário, voou até a janela e se lançou como uma
flecha na almofada.
Imediatamente
se ouviu um agudo trinado de dor. As penas amarelas se tingiam de sangue, pois
o canário enfiara os alfinetes no peito. Ergueu-se com um desesperado bater de
asas, confiou-se ao vento, mergulhou num esvoaçar incerto e pousou no chão com
as asas abertas.
Assustada,
sem saber exatamente o que acontecera, a princesa virou depressa as folhas ao
contrário, esperando que, se lhe
devolvesse a forma humana, os ferimentos desaparecessem.
Porém, ai,
ai, ai, o príncipe ressurgiu, jorrando sangue por profundas feridas que lhe
dilaceravam no peito a roupa amarela.
Jazia de bruços, cercado por seus cães.
O ulular dos
cães atraiu os caçadores, que o socorreram e o carregaram numa liteira de
galhos, sem que pudesse ao menos alçar
os olhos para a janela de sua amada, ainda aterrorizada
de dor e espanto.
Conduzido ao
seu palácio, o príncipe não dava sinais de recuperação e os médicos não eram
capazes de confortá-lo. As feridas não cicatrizavam e continuavam a doer.
O rei, seu
pai, espalhou cartazes por todos os cantos,
prometendo
tesouros a quem soubesse como curar o jovem; mas ninguém se apresentava.
Entretanto,
a princesa se consumia por não poder chegar perto do amado. Começou a cortar os
lençóis em tiras finas e a amarrá-las de modo a fazer uma corda comprida.
Com essa
corda, certa noite, escapou da altíssima torre.
Saiu andando
pela trilha dos caçadores. Mas, entre a escuridão de
breu e os uivos dos lobos, achou que era melhor esperar o amanhecer e, tendo encontrado
um velho carvalho com o tronco oco, entrou e se acomodou lá dentro, adormecendo
logo, cansada como estava.
Quando
despertou ainda era noite alta: pareceu-lhe ter ouvido um
assobio. Apurou os ouvidos e escutou outro assobio, depois um terceiro e um
quarto.
Logo
distinguiu quatro chamas de vela que se aproximavam. Eram quatro bruxas, que
vinham dos quatro cantos do mundo, e haviam marcado encontro embaixo daquela
árvore.
Sem ser
vista, a princesa espiava por uma fenda do tronco, vendo as quatro velhas com
as velas nas mãos, que se faziam grandes festas e zombavam:
—
Uah!Uah!Uah!
Acenderam
uma fogueira junto à árvore e se sentaram para se aquecer e assar alguns
morceguinhos para o jantar.
Depois de
comer bastante, começaram a contar umas às outras o que tinham visto de
interessante pelo mundo.
— Vi o
sultão dos turcos que comprou vinte mulheres novas.
— Vi o
imperador dos chineses que deixou crescer o rabo-de-cavalo
até alcançar três metros.
— Vi o rei
dos canibais que comeu o camareiro por engano.
— Vi o rei
daqui de perto que tem o filho doente e ninguém sabe a cura, porque só eu sei.
— E qual é?
— perguntaram as outras bruxas.
— No
aposento dele há um taco solto. Basta erguer o taco e se encontra uma ampola;
na ampola há um unguento que fará desaparecer todas as feridas dele.
De dentro da
árvore, a princesa estava para dar um grito de alegria: teve de morder um dedo
para ficar quieta.
Quando já
tinham dito tudo que tinham para dizer, as bruxas se despediram cada uma seguiu
seu caminho.
A princesa
pulou para fora da árvore e, ao amanhecer, se pôs a
andar em direção à cidade. Na primeira loja de coisas usadas que encontrou, comprou
uma velha roupa de médico e uns óculos.
Assim,
disfarçada, foi bater no palácio real. Vendo aquele doutorzinho mal-ajambrado,
os serviçais não queriam deixá-lo
entrar, mas o rei disse:
— De
qualquer jeito não há de fazer mal a meu pobre filho, que
pior do que está não pode ficar. Deixem este também tentar.
O falso
médico pediu que o deixassem sozinho com o doente, o
que lhe foi concedido.
Quando
chegou à cabeceira do amado, que gemia inconsciente em sua cama, a princesa
queria explodir em lágrimas e
cobri-lo de beijos, mas se conteve, pois devia executar
rapidamente as prescrições da bruxa.
Pôs-se a
andar de um lado para outro, até encontrar um taco solto: levantou-o e
encontrou uma pequena ampola cheia de
unguento.
Com esse
unguento, pôs-se a esfregar as feridas do príncipe; bastava passar a mão cheia
de unguento em cima da ferida para que ela desaparecesse. Toda contente, chamou
o rei, e o rei viu o filho sem feridas, com o rosto corado, que dormia
tranquilamente.
— Pegue o
que quiser, doutor — disse o rei. — Todas as riquezas do tesouro do Estado são
para o senhor.
— Não quero
dinheiro — disse o médico. - Dê-me apenas o escudo do príncipe com o brasão da
família, a bandeira do príncipe e sua jaqueta amarela, aquela perfurada e cheia
de sangue.
E tendo
recebido os três objetos, foi embora.
Após três
dias, o filho do rei saiu de novo para caçar.
Passou perto
do castelo, em meio ao bosque, mas nem levantou os olhos para a janela da
princesa. Mas ela pegou o livro, folheou-o, e o príncipe, mesmo contrariado,
foi obrigado a se transformar em canário.
Voou até o
aposento e a princesa o fez se transformar de novo em
homem.
— Deixe-me
ir embora — disse ele —, não lhe basta ter me ferido com seus alfinetes e ter
me causado tanto sofrimento?
De fato, o
príncipe perdera todo o amor pela moça, pensando que
fosse ela a causadora de sua desgraça.
A moça
estava a ponto de desmaiar.
— Mas eu o
salvei! Fui eu quem o curou!
— Não é
verdade — disse o príncipe. — Fui salvo por um médico forasteiro, que não pediu
outra recompensa além do meu brasão, da minha bandeira e da minha jaqueta ensanguentada!
— Eis o seu
brasão, eis a sua bandeira e eis a sua jaqueta! Era eu aquele médico! Os
alfinetes foram uma crueldade da minha madrasta!
O príncipe,
atordoado, olhou-a nos olhos por um momento.
Jamais lhe
parecera tão linda. Caiu a seus pés, pedindo- lhe perdão e declarando toda sua
gratidão e seu amor.
Na mesma
noite, disse ao pai que queria casar com a moça do castelo do bosque.
— Você só
pode desposar a filha de um rei ou de um imperador —
disse o pai.
— Desposo a
mulher que me salvou a vida.
E prepararam
as núpcias, convidando todos os reis e as rainhas da região. Veio também o rei,
pai da princesa, sem saber de nada. Quando viu se adiantar a noiva, exclamou:
— Minha
filha!
— Como? —
Disse o rei dono da casa. — A noiva de meu filho é sua filha? E por que não nos
disse?
— Porque —
disse a noiva — não me considero mais filha de um homem que me deixou ser
aprisionada por minha madrasta. — E apontou o indicador para a rainha.
O pai, ao
ouvir todas as desgraças da filha, foi tomado de pena por ela e de desdém pela
sua pérfida mulher. Nem esperou
voltar para casa para mandar prendê-la. E, assim, o casamento foi celebrado com satisfação e alegria por todos,
exceto por aquela desgraçada.
Alfabetização : livro do aluno / Ana Rosa Abreu - Domínio Público.
Alfabetização : livro do aluno / Ana Rosa Abreu - Domínio Público.
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